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26 outubro 2017

A criança, o divórcio e os recasamentos: situações tipicas na clinica gestáltica com crianças.


         
            Nos últimos anos, observamos um número cada vez maior de divórcios entre casais, caracterizando uma grande transformação no modelo de família vigente até então: a família nuclear, composta de pai, mãe e filhos, com casamentos que duravam até a morte de um dos cônjuges.

                  Tal transformação, com o acréscimo de diversos movimentos de gênero que vem ganhando cada vez mais espaço  atualmente, abriu a possibilidade da coexistência de inúmeros modelos de família e trouxe um grande desafio para as crianças integrantes de novas configurações familiares: o lidar com as diferenças e, particularmente, com o impacto social e relacional que tais diferenças causam. 

                  No que diz respeito particularmente as crianças fruto dos casamentos desfeitos, a aceitação da condição de “filhos de pais separados” vem sendo cada vez mais vivido como algo normal e corriqueiro e não mais como um fator determinante de discriminação, tal qual observávamos há algumas décadas atrás. 

          Com isso,  um dos elementos que dificultavam as crianças à superação da separação dos pais foi bastante minimizado; no entanto, as sequelas emocionais e relacionais continuam presentes, tal como podemos verificar na clinica gestáltica com crianças e encontram-se intimamente ligadas à forma como essa separação se dá e a atitude dos adultos envolvidos.

                É importante assinalarmos que toda separação é uma mudança e mudança é algo que faz parte da vida. Nesse caso, tal mudança traz alguns sentimentos que são difíceis de lidar, pois o divórcio implica inevitavelmente em algumas perdas, reais e concretas, e com isso, é preciso que haja um luto, para que se possa estar aberto às novas possibilidades que essa mudança traz. 

                   Embora tenhamos o hábito de perceber o aspecto negativo de uma mudança, é fundamental que lembremos que a mesma aponta para novas possibilidades e que, portanto, é possível reconstruir uma vida após uma separação, tanto para os adultos quanto para as crianças.

Para que isso seja possível, as perdas precisam ser encaradas, contatadas, vividas; os sentimentos precisam ser expressos, respeitados e as pessoas em questão, particularmente as crianças, precisam de tempo e espaço para viver tudo isso. Aceitar os sentimentos que emergem a partir de uma situação de divórcio é o primeiro e crucial passo para enfrentá-los e superá-los, abrindo espaço para a reconstrução e o surgimento do novo.


Não é um momento fácil para ninguém. Para os pais é  duplamente difícil, pois além de lidar com as  próprias questões conjugais, são eles que vão possibilitar que a  criança encare esta mudança e elabore este luto. 

Entretanto, por mais difícil que seja, essa tarefa é dos pais, porque a criança não tem condições de realizar tal empreitada sozinha e já se sente bastante impotente na medida em que não pode escolher, não tendo controle sobre algo que é decidido pelos adultos e para os adultos, mas que as afeta inevitavelmente.

Assim, o que vai nos apontar em que condições ficam as crianças em uma separação, é exatamente a possibilidade que os adultos em seu ambiente tem de facilitar ou não o processo total para a criança.

Muitas dificuldades podem surgir nesse processo, afetando sobremaneira as crianças: muitos pais, por exemplo, esquecem que apesar de separados, continuam sendo pai e mãe da criança, ou seja, continuam precisando exercer sua função parental,  pois a criança precisa de ambos, e um não consegue e nem deve, substituir o outro.

É comum ouvir mães dizendo que precisam “ser mãe e pai ao mesmo tempo”, o que, é bastante complicado pois não se pode ser “dois” e a criança apesar do esforço da mãe, se ressente da falta do pai. Assim, a falta, quando existe de fato, precisa ser vivida tal qual ela se apresenta: como falta. Só assim a criança conseguirá elaborar as implicações da separação e salvaguardar a relação com o cônjuge mais presente, que também possui questões para serem vividas e resolvidas. 

Alguns cônjuges, na tentativa de serem “tudo” para a criança, acabam criando expectativas de reconhecimento e isso ainda é mais nefasto, pois além de precisar lidar com a separação e suas implicações, a criança ainda precisa satisfazer a tais expectativas.

 Na medida em que as crianças, particularmente as pequenas, possuem um predomínio da fantasia, um das implicações presentes é o sentimento de culpa. A criança tende a se responsabilizar pelo que está acontecendo, o que na maior parte das vezes é reforçado por situações concretas, pois os pais muitas vezes divergem violentamente acerca da sua educação e da sua guarda, uma vez que não conseguem se entender em outros planos da relação.  

A crença da criança acerca da sua responsabilidade na separação dos pais costuma acarretar muito sofrimento e inúmeras tentativas de reconciliar os pais, do tipo “se eu fizer isso eles voltam” ou ainda “se eu for assim, bem bonzinho, eles param de brigar”, etc. Daí ser importante que se assegure para a criança de que ela não tem nenhuma responsabilidade pela separação, embora em uma fase inicial ela ainda algumas vezes alimente a expectativa de reversão da situação, oferecendo inúmeras “soluções” para o conflito, fazendo perguntas ou desenvolvendo comportamentos no sentido de “juntar os pais”. Esta insistência da criança deve ser acolhida para que ela gradativamente vá construindo a compreensão e aceitando o fato de ser uma situação irreversível.

Assim, é muito difícil para uma criança conviver com um casal que sucessivamente se separa e reata a relação; isso muitas vezes reforça a idéia de que é a criança que está no controle e infelizmente muitos pais terminam por oferecer essa certeza, quando dizem que reataram o casamento por causa das “crianças”. Uma criança que gasta toda sua energia na tentativa de manter os pais juntos e de controlar as suas vidas,  é uma criança que se desloca das suas ocupações e vivências de criança para viver a vida de adultos, o que a curto, médio e longo prazo pode trazer conseqüências bastante sérias para sua vida escolar, social e relacional.

Quando o cônjuge que fica com a criança tende a usa-la como algo que vai ocupar o lugar dessa pessoa que foi perdida, a criança não perde só o outro cônjuge, como também sua condição de criança. Quando ela ocupa o  lugar do outro, está ocupando um outro lugar na família, o que compromete bastante sua percepção de si.

No caso do menino, muitas vezes ele se torna o “homem da casa”, gerando culpa em relação ao pai: “Eu sou melhor que o papai, pois ocupo o lugar dele. Mas eu preciso deste papai, então como eu vou disputar com ele?” e um grande sentimento de fracasso em relação a mãe uma vez que  jamais conseguirá satisfazer essa demanda, pois a mãe precisa de um adulto e não de uma criança ao seu lado.

Muitas vezes as crianças tornam-se confidentes dos pais; eles compartilham com elas coisas que uma criança não tem nem como entender e elaborar. No caso das meninas, por exemplo, é comum as mães transformá-las em aliadas contra os homens que “não prestam”, dificultando toda a sua vida relacional posterior além de roubar momentos preciosos da criança com preocupações que dizem respeito aos adultos. Uma situação como essa impede a criança de reorganizar sua vida de criança frente às mudanças que ocorrem com a separação; é uma armadilha que ela não tem condições de enfrentar sozinha.

Uma outra coisa comumente observada em uma separação é o que denominamos “dilema da lealdade”, que consiste em um terrível conflito presente na criança acerca de qual “partido” ela irá tomar no curso da separação.


Na fase inicial da separação é algo naturalmente esperado mas que da mesma forma que a questão da responsabilidade, não deve ser reforçado pelos pais. A forma como  os pais vão lidar com a situação é fundamental: se os pais ficam zangados realmente porque esta criança concordou com o outro, ou se a criança achou legal o que o outro fez, esta fantasia é confirmada, do tipo “eu tenho que tomar partido, eu tenho que concordar com um ou com outro”. 

Tal situação gera um sentimento de culpa enorme, porque na percepção da criança ela não pode gostar da mamãe porque o papai fica triste e vice-versa. A criança acaba se exigindo de se separar também de um dos cônjuges; uma separação de cunho afetivo, porque concretamente ela já vai se separar, ela vai estabelecer com esse cônjuge que sai de casa um outro tipo de relação,  já tendo que lidar com isso. A essa dificuldade acaba sendo acrescida uma outra: “não posso mais gostar e/ou me interessar e/o sentir saudade daquele que partiu”.

Outro ponto que merece destaque é a possibilidade que a criança escolha com quem quer ficar; embora inicialmente pareça uma atitude bastante democrática, pode causar um extremo sofrimento, particularmente para a criança pequena. Ela não escolhe se os pais vão se separar ou não e aí depois tem que escolher com quem vai ficar? Escolher com quem vai ficar pode rapidamente transformar-se em escolher de quem vai gostar, e muitos pais ao fornecerem essa “possibilidade” para a criança, nas entrelinhas “exigem” exatamente isso desse filho.

Em outras situações, o cônjuge que fica com a criança tem ciúmes quando a criança está com o outro cônjuge. Muitas vezes, cria uma fantasia de que a criança prefere o outro, e faz uma série de exigências e reclamações do tipo “com o seu pai você faz tudo, comigo não”, instigando culpa e medo na criança, que faz do silêncio sua grande “tática de sobrevivência”.

Ao perceber a divergência dos adultos, as crianças muitas vezes vão manipular tal divergência na tentativa de obter coisas. Se a criança já esta chateada e insegura em função da separação, e percebe que se ela manipula, ela reafirma seu poder e recebe coisas, sejam concretas ou não, cria-se um circulo vicioso onde as necessidades da criança parecem não ter fim, porque na verdade elas não estão sendo realmente satisfeitas.


Muitos pais, movidos pela culpa, tendem a “compensar” a criança pela dor da separação com ausência de limites e uma profusão de bens materiais. É fato que a criança precisa de ajuda para elaborar a situação de mudança, perda e luto, mas com certeza não é deixando que ela faça tudo o que quer ou “comprando” seu afeto. Assim, muitos pais dão um presente, quando a criança está pedindo outra coisa, oferecendo à criança uma ilusão de solução.

Então, para ajudar a criança a passar por esse momento, inicialmente é fundamental tentar preserva-la ao máximo de situações de briga e agressão. Além de ser algo extremamente assustador, tal situação torna-se um modelo de resolução de conflitos e de formas de lidar com a diferença e os problemas encontrados nas relações, que a criança pode levar para sua vida adulta e suas demais relações.

Também é importante explicar para a criança o que está acontecendo, assinalando as conseqüências disto, fazendo com que este momento se torne menos assustador, mesmo que ela seja ainda bem pequena. Isso é crucial para que a criança não construa fantasias de abandono, de que ela não merece sequer uma explicação ou uma despedida do cônjuge que deixa a casa. 


Da mesma forma, o adulto precisa se preparar para responder várias vezes às mesmas perguntas, pois as crianças precisam falar disso muitas vezes de forma que possam compreender e aceitar a nova situação.

Vale lembrar que o “direito à verdade” não inclui detalhes sórdidos, tal como falar mal do outro cônjuge, ou qualquer outra coisa que saia do ponto principal que é “papai e mamãe não vão mais morar juntos, porque eles não querem mais ficar casados e isso implica.....”

Outra coisa fundamental é, na medida do possível, tentar manter todas as outras coisas inalteradas, não sobrepondo mudanças, pois quanto mais mudanças, maior a dificuldade da criança lidar com separação. É importante manter a sua rotina, o seu espaço, inclusive na casa do cônjuge que saiu de casa, pois ao sentir que ela possui seu lugar, suas coisas e suas referências, isso traz a segurança para enfrentar essa nova fase em sua relação com os pais. É importante lembrar: foram os pais que se separaram e não as crianças que se separaram de um ou de outro.

Atualmente, contamos com a possibilidade da guarda compartilhada. Tal possibilidade inicialmente nos parece um grande avanço, desde que as pessoas envolvidas estejam “avançadas emocionalmente” também. Com pais emocionalmente comprometidos, isso não costuma acontecer de forma benéfica para a criança, correndo-se o risco da criança não reconhecer nenhuma das duas casas como “sua” e desenvolver sentimentos significativos de abandono e falta de cuidado, uma vez que precisam de referências e constância em seu cotidiano.

Por fim, uma implicação bastante freqüente para a criança quando os pais se separam, é a possibilidade de que eles encontrem um outro companheiro e se casem novamente, inclusive com a geração de novos irmãos, biológicos ou não.

 Contrariando as expectativas, o que observamos muitas vezes, é que as crianças adoram quando os pais arrumam um novo parceiro, seja porque em algumas situações “tira o peso dos ombros” da criança, que vinha arcando afetivamente com a solidão do pai ou da mãe, seja porque em sua maioria as crianças alimentam a fantasia de juntar, reunir, de ter uma família.

No entanto, quando as crianças reagem mal a um novo parceiro, acreditamos que a relação da criança com esse cônjuge, encontra-se de alguma forma ameaçada, calcada em bases inseguras, gerando ciúme e medo de abandono. 

Por isso, é preciso esclarecer para a criança a nova situação de forma clara, afetiva e sem culpa. Pais que comunicam tal situação de forma culpada acabam por transmitir a mensagem de que “isso é uma coisa que não deveria estar sendo feita” ou de que estão pedindo “permissão” para os filhos acerca de algo que é da alçada e responsabilidade de adultos. 

Crianças não devem “escolher” parceiros para os pais, pois isso as faz acreditar que possuem o poder de resolver e mandar na vida dos mesmos, o que  gera uma grande sensação de abandono e insegurança: “se sou eu que cuido e resolvo a vida deles, quem vai cuidar de mim?”.


Da mesma forma, a criança não é obrigada a gostar imediatamente do novo companheiro; é fundamental que se dê tempo para a criança se aproximar,  dando a ela a possibilidade de construir um laço afetivo progressivamente, na sua medida e não na medida dos pais. 

Assim, uma vez que os adultos puderem respeitar e acolher os sentimentos das crianças, encorajando-as a compartilha-los, estarão mostrando que a vida está sempre mudando, que existem mudanças boas e ruins em um dado momento, e que podemos aprender a lidar com elas e transforma-las em algo melhor.




2 comentários:

  1. Como a guarda compartilhada reflete na vida de crianças pequenas? Na visão da psicologia qual a guarda "que gera melhor conforto" pra criança?

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