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22 março 2011

A visão holistica de ser humano e a questão do sintoma em GT com crianças


Uma importante implicação do fato de percebermos o ser humano como uma totalidade é que ao longo do processo terapêutico, nas sessões com a criança, não importa se ela vai falar, ou se vai se expressar através de sinais, ou através de murmúrios, ou não falar nada, ou só brincar, ou ignorar o psicoterapeuta.
Seja qual for a sua forma de expressão, entendemos que essa é a expressão de sua totalidade nesse momento e, isso implica que no processo terapêutico, não há necessidade do psicoterapeuta focalizar o sintoma, pois se entendemos a criança como um todo, o que quer que ela traga na relação terapêutica, quaisquer que sejam seus temas, mesmo que não se refiram as queixas formuladas, ainda assim lhe dizem respeito e encontram-se relacionados com o sintoma dentro de uma perspectiva figura-fundo.
As crianças chegam à psicoterapia geralmente porque apresentam algo que incomoda ou chama a atenção dos adultos que a cercam e a essa altura já foram fartamente questionadas, punidas ou ameaçadas acerca da questão e, por isso, não seria estranho imaginar que a maioria delas simplesmente não queira falar sobre isso.
Para o gestalt-terapeuta, a partir de sua visão holística de ser humano, não importa se a criança focalizará ou não aquilo que é relatado como a queixa ou os sintomas apresentados e, por isso, não há necessidade de ficar questionando as notas da escola, ou quantas vezes a criança fez pipi na cama ou em quantos coleguinhas bateu na última semana.
Com isso, vamos perceber que o que ela escolhe trazer para o espaço terapêutico na relação com o psicoterapeuta é sempre algo muito importante para ela, embora aparentemente não tenha nenhuma ligação com seus sintomas.
A criança vai trazer aquilo que é importante para ela; o sintoma é importante para os pais, é para a escola ou até mesmo para o psicoterapeuta, mas não é, muitas vezes, importante para a criança.
E em nossa experiência constatamos que aquilo que a criança traz é exatamente aquilo que ela realmente precisa que seja trabalhado inicialmente.
Algumas vezes,  em um momento posterior do processo terapêutico, a criança traz o sintoma para ser trabalhado;  em outras situações, desenvolvemos todo um processo terapêutico sem nunca ter discutido ou trabalhado diretamente determinado sintoma.
Vejamos o exemplo do menino que vem à psicoterapia com a queixa de baixo rendimento escolar. O psicoterapeuta começa a entrevista falando do motivo pelo qual ele se encontra ali e o menino parece não se interessar muito, respondendo suas perguntas com monossílabos enquanto percorre a sala com o olhar. Ao se deparar com a maleta de médico diz: “Aquilo são coisas de médico”.
Enquanto o psicoterapeuta tagarela e preenche a própria ansiedade no início da sessão questionando-o a respeito da escola e das notas, uma figura de interesse aparentemente desvinculada da queixa se delineia na sessão.
Nesse ponto, se o psicoterapeuta entende que não há necessidade de “perseguir” o sintoma e acompanha o foco apontado pela criança, ele pode chegar ao fato de que esse menino perdeu a avó há poucos meses, que ele possui situações inacabadas com a mesma e fantasias de culpa em relação a sua morte, o que o faz “pensar o tempo todo nisso” e impedir que ele preste atenção a outras coisas na sua vida, inclusive nas aulas da escola.
Se, por outro lado, o psicoterapeuta não tenta desenvolver a questão apontada pela criança e entende o comentário como uma forma de “fugir” do que estava sendo “conversado”, volta ao tema da escola ou simplesmente não investe no comentário lacônico a respeito das “coisas de médico”, é bastante provável que essa criança se feche ainda mais e identifique o psicoterapeuta como mais um adulto que vai cobrar dela algo que ela não está podendo realizar.   
Dessa forma, trabalhamos com o que a criança traz no momento e não com o sintoma,  pois o que ela traz  faz parte de sua configuração total e encontra-se inevitavelmente articulado com o sintoma através da rede interdependente que compõe sua totalidade.
Com as sucessivas reconfigurações do campo promovidas pelas intervenções terapêuticas, progressivamente a criança vai expandindo suas possibilidades de lidar com o mundo e construindo outras formas de satisfazer suas necessidades de maneira que num dado momento possa prescindir do padrão antigo e agora obsoleto de relação com o mundo que é representado pelo sintoma.
Levando em conta essa perspectiva, consideramos então que é possível começar o processo terapêutico por onde a criança se encontra no momento, a partir do que ela puder trazer e da forma como ela puder expressar na medida em que estaremos sempre lidando com uma faceta de seu todo e acreditando que uma vez intervindo na parte, a totalidade será reconfigurada, já que ela se encontra em relação com outras partes do ser total.

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