Se encararmos o espaço terapêutico e a relação terapêutica como essencialmente permissivos, concluiremos que serão poucos os limites estabelecidos nesse campo. Embora escassos, são extremamente importantes, pois, por um lado, propiciam a vivência da frustração e da possibilidade de superá-la de forma criativa e satisfatória, e, por outro, da sensação de proteção e cuidado fornecida pelo “contorno” que o limite imprime.
Em psicoterapia, utilizamos o critério da integridade para o estabelecimento de limites. Ele diz respeito a três modalidades de integridade: a da criança, a do psicoterapeuta e a do espaço terapêutico. Dessa forma, apesar de falarmos o tempo inteiro em permissividade, isso não significa ausência total, mas um número reduzido e inquestionável de limites que visa particularmente a segurança do campo total criança/psicoterapeuta.
O estabelecimento destes critérios é fundamental na medida em que precisa levar em conta as necessidades da criança no espaço terapêutico, condizentes com a tarefa psicoterapêutica e não com regras, valores ou humores do psicoterapeuta naquela situação.
É particularmente importante que ele fique atento àquilo que o incomoda no comportamento da criança de forma a compreender sua mobilização pessoal na situação e não transformá-la numa justificativa desnecessária e contrária à posição terapêutica para a apresentação de determinados limites.
O limte pode desdobrar-se em duas modalidades: verbal e físico. Geralmente, apresentamos o limite de forma verbal; porém, em algumas situações, ele não será suficiente ou não haverá tempo de só apresentar o limite verbal. No caso da criança que colocou as algemas (de borracha) em torno do pescoço e apertou, foi preciso agir imediatamente enquanto era fornecido o limite verbal: - “Você não está aqui para se machucar. Você pode escolher um boneco e apertar o pescoço dele. O seu não.”
Algumas crianças chegam muito agressivas ao espaço terapêutico, ameaçando a integridade da sala e do psicoterapeuta. Com essas especificamente, é preciso em muitos momentos contê-las fisicamente enquanto oferecemos os limites verbais, evitando ao máximo que elas destruam algo na sala ou machuque o psicoterapeuta.
Tais comportamentos podem gerar muita culpa , medo de retaliação ou percepção equivocada acerca do poder sobre a relação e o espaço terapêutico, causando a sensação de “ninguém pode comigo” e, implicando em um sentimento de abandono, desproteção e falta de cuidado.
Isso nos mostra como a questão dos limites está extremamente ligada à questão da aceitação. Não apresentamos limites a partir de nossas vontades, mas de critérios compatíveis com a tarefa terapêutica.
Não apresentamos limites zangados ou retaliativos, mas que possibilitem à criança obter uma percepção mais clara de si mesma.
Não apresentamos limites para frustrá-la simplesmente, mas para auxiliá-la a buscar formas mais satisfatórias em sua relação com o mundo.
Assim, podemos falar de três tempos na apresentação do limite:
1- apresentar o limite;
2- reconhecer e validar o sentimento envolvido na situação;
3- oferecer alternativas para a expressão do sentimento em questão.
Também é importante a forma como esse limite é apresentado: um tom de voz firme e acolhedor, sem nenhuma conotação crítica e com frases construídas de forma que ele não seja apresentado como algo pessoal.
Ao abordar uma criança que, por exemplo, ameaça pintar as paredes e/ou os objetos da sala, costuma ser mais fácil ela ouvir: - “Se você quiser, você pode pintar nesses vários tipos de papel que temos aqui. A parede e o chão não podem ser pintados.
Nesse caso o limite é apresentado ao mesmo tempo em que a alternativa, com ênfase na alternativa e não no comportamento que está sendo limitado.
Para algumas crianças a simples inversão na apresentação do limite faz toda a diferença, uma vez que permite a confirmação imediata da necessecidade em jogo e oferece várias possibilidades para isso, antes de demarcar a fronteira daquilo que não pode.
Na maioria das vezes, as crianças costumam ouvir o tempo todo que não podem fazer isso ou aquilo, e se começarmos já demarcando o que não pode, sua disponibilidade para ouvir e aceitar o limite acaba sendo bem menor.
É importante observar que ao apresentarmos o limite dessa forma, não estamos entrando em discussão com a criança acerca de nossa vontade ou necessidade de que o chão e a parede fiquem limpos. Dizer algo como - “Eu não quero que você pinte a parede” ou - “Você não pode pintar a parede e o chão”, torna o limite algo pessoal e convida a criança a entrar em um embate direto.
Concluímos que os limites incidem sempre sobre o comportamento e nunca sobre os sentimentos da criança envolvidos na situação. Os sentimentos precisam ser experimentados, aceitos e canalizados em formas adequadas e construtivas de expressão para que a criança possa percebê-los de outro modo, atribuindo-lhe assim, outros significados.
Da mesma forma, os limites devem ser apresentados somente no momento em que se fizerem necessários, evitando assim trazer ao espaço terapêutico algo que não emerge da criança e sim do psicoterapeuta, antecipando situações que talvez não venham a acontecer e gerando em algumas o receio de arriscar e, em outras, a necessidade de se contrapor a algo que já foi colocado, ainda que ela não tenha feito nada nesse sentido.
O próprio enquadre da psicoterapia já fornece a vivência de uma série de limites, sendo o tempo da sessão um dos mais óbvios.
Muitas crianças resistem bravamente ao término da sessão. Algumas dizem - “Só mais um pouquinho”, tentando seduzir o psicoterapeuta; outras fazem de conta que não ouviram e continuam a fazer o que estavam fazendo ou iniciam uma outra coisa, outras reclamam e dizem que não querem ir, outras desarrumam todos os brinquedos, ou jogam as almofadas para o alto, ou tentam destruir a sala ou bater no psicoterapeuta, ou ainda se debulham em lágrimas, implorando mais um pouco de tempo
Assim, precisamos lembrar que as experiências vivenciadas pela criança no espaço terapêutico servem, em última instância, para auxiliá-la a construir recursos para lidar com sua vida mais ampla.
Ela encontrará o tempo inteiro inúmeros limites e frustrações tais quais o término da sessão, ou a impossibilidade de levar um brinquedo para casa, ou ainda de ser atendida imediatamente só porque chegou mais cedo.
Por isso, ao diluir tais limites e permitir que as crianças os ignorem ou os subvertam, não estaremos trabalhando a serviço da tarefa terapêutica, mas provavelmente em função de necessidades pessoais a partir da mobilização causada pelas crianças.
Crianças que imploram adoravelmente ou desesperadamente mais um pouquinho, ou que resolvem apresentar uma brincadeira cujo conteúdo é bastante sedutor ao psicoterapeuta, ou ainda aquelas que chegam atrasadas e por isso têm menos tempo de sessão, costumam ser em muitos momentos com quem temos mais dificuldade de lidar.
Seja qual for a razão, estes limites devem ser mantidos ao máximo, pois assim estaremos mobilizando “desequilíbrio” no campo e promovendo possibilidades de responsabilidade, escolha e reconfigurações.
Uma criança que chega atrasada, por exemplo, precisa aprender a lidar com as conseqüências disso, pois o psicoterapeuta não pode fazer isso por ela. Se ela chegou atrasada, porque seu responsável demorou a encontrar vaga para estacionar ou o trânsito estava ruim, é uma boa oportunidade para começar a lidar com o que ela não tem controle e que, inevitavelmente, muitas vezes afeta a sua vida.
Se, por um outro lado, ela chegou atrasada porque sua mãe se atrasou ou esqueceu do horário, também é uma boa oportunidade para começar a trabalhar a comunicação entre a criança e a mãe e a capacidade dela apropriar-se de suas necessidades e de reivindicá-las junto à sua mãe.
Dessa forma, se o psicoterapeuta simplesmente compensa o tempo “perdido”, estará abrindo mão de algumas boas oportunidades de trabalho e, corroborando o funcionamento não saudável da criança e da família.
Muitas vezes, pelo caráter permissivo do espaço terapêutico, as atividades da criança dentro da sala, se realizadas fora dela, provocariam sérias críticas.
Para protegê-la de possíveis sentimentos de culpa e para prevenir a formação de qualquer falso conceito a respeito do que deveria ser um comportamento aceitável socialmente, é fundamental que a auxiliemos a exercitar sua discriminação, ajudando-a a perceber as diferenças entre os contextos e aquilo que cabe e é permitido em cada um, para que a cada momento e situação ela possa escolher a melhor de forma de agir, expressar-se e comportar-se.
Em nosso espaço terapêutico, por exemplo, é aceitável e permitido o uso de palavrões de qualquer espécie. Não somos instrutores de etiqueta, somos psicoterapeutas. Se o palavrão é uma expressão genuína de alguma coisa que é importante para a criança, ela pode dizê-lo em sua psicoterapia.
Porém, discutimos a respeito dos fóruns adequados para esse tipo de expressão e das conseqüências em seu uso inadequado, permitindo assim que a criança perceba que a sala de aula por exemplo não é local para proferir palavrões e que xingar o coordenador não costuma trazer conseqüências positivas ao aluno, na grande maioria das escolas.
Portanto, encarar a questão da permissividade em psicoterapia, não é simplesmente deixar a criança fazer tudo que lhe vier a cabeça. É estar atento para promover varias possibilidades de experiencias novas e de percepção de si mesmo, validando os sentimentos e necessidades da criança, sem no entanto permitir que todos eles sejam expressos de toda e qualquer forma.
Nisso tudo, o mais importante continua sendo o psicoterapeuta: como ficam os limites do psicoterapeuta? o que fazer com aquilo que não o deixa confortável?
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boas reflexoes!